Colégio de freiras
Genaura Tormin
Era um lar, o colégio! Daqueles que não existem mais. A educação disciplinada, permeada de trabalho, lazer, esporte e instrução, construíra os alicerces que fizeram de nós o que somos hoje.
inhas recordações voltavam à fazenda do meu pai. Ele comprara um caminhão e partira para o nordeste brasileiro para trazer peões, pessoas para o serviço de lavrar a terra. A colheita aproximava-se e ele não poderia prescindir da mão-de-obra.
Na volta, papai encontrara o lar desfeito. A esposa o abandonara. Triste, papai não abdicara das filhas, embora os tios se prontificassem a ficar conosco: eu, Josefa e Zélia. As duas últimas do segundo casamento.
Naquele ano, com o impasse, houvera grande prejuízo nas atividades da fazenda, bem como da casa de farinha. Papai não desanimara. Sempre tivera pulso forte e determinação. Embora não tivesse estudo didático, sabia expôr as suas ideias e conseguir o desejado.
— Vou internar vocês num colégio de freiras. Quero que vençam na vida pelo estudo, pela boa educação. Somente elas poderão ensinar isso a vocês — exclamara papai.
Eu tinha nove anos, naquela época.
Numa madrugada fria, saímos de Minas. A lua branca ainda passeava no céu estrelado, banhando de luz a silhueta do papai. O terreiro de chão batido, o tamboril, o curral, os pés de laranjeiras carregadinhos de frutos, a casa da fazenda de janelas fechadas na calada da noite, ficaram impregnados em mim feito um presságio de saudade e gratidão. Não posso esquecer do seu telhado vermelho, iluminado pela luz da lua, distanciando-se a cada vez que olhávamos para trás. O ar frio daquela madrugada exalava perfume de flores silvestres, misturando-se ao zumbido de insetos e ao chilrear de pássaros notívagos.
Éramos seguidos pelas próprias sombras que se esgueiravam ao lado. O caminho fazia curvas entre os arvoredos e parecia não ter fim. As montanhas se delineavam à frente, como a se despedirem de nós. De vez em quando a lua brincava de esconde-esconde nas frondes das árvores e dos coqueiros, alumiando a plantação de algodão que se debulhava em flocos brancos entre a ramagem verde e viçosa. Ninguém ousava conversar, embora o iminente desbravamento do desconhecido acalentasse as nossas almas. Num clima nostálgico, ouvia-se ao longe o cantar de galos, anunciando os albores da manhã.
Na ponte, o riacho gorgolejava entre as pedras, exibindo os alvos lírios à sua margem, enfeitado pelo cricrilar de grilos no rumorejo do mato denso. As libélulas, em vaporosa dança, faziam reverências ao amanhecer, que despontava em tênue claridade por trás serra. O vapor do riacho deixava visível seu curso pelas terras da fazenda, feito a fumaça de um trem de ferro. Eram lágrimas evaporadas num adeus inaudível. Ao atravessá-lo, não pude conter o pranto. O coração ficava naquelas águas, naquelas margens que nos proporcionaram tanta alegria. Era ali que a nossa fantasia criava asas, voava em histórias de príncipes montados em cavados brancos, de bruxas malvadas, castelos assombrados, portas subterrâneas para lugares encantados, fabricados pela fertilidade do nosso mundo de criança, debulhado em magias.
O cheiro da manhã, impregnado de odores tão queridos, cravava em mim as últimas flechas. Até uma coruja entoara seu canto triste por despedida. A saudade da casa da fazenda, dos folguedos, da comida gostosa feita no fogão à lenha, já se fazia sentir. A ordem era sermos fortes apesar da pouca idade. Assim íamos deixando para trás parte de nós rumo a um novo destino. Com certeza, seria um marco divisor que marcaria o resto de nossas vidas.
Na rodovia, ao tomarmos o ônibus, o coração apertara-se no peito, agitando-me o corpo frágil em tremores e náuseas. Uma saudade cortante remexia-me as vísceras. Era a certeza de um adeus definitivo que se misturava à poeira da estrada deixada para trás. Eu não podia chorar! Percebia que papai estava fazendo o melhor por nós. Mesmo criança, eu entendia que mudar era necessário. O meu espírito já estava sendo previamente preparado para suportar as intempéries da vida. Talvez eu fosse rocha e não soubesse.
Chegando a Goiânia, ficamos em casa de um amigo do papai por alguns dias. No Colégio Santo Agostinho, papai fora bater. Era dirigido por freiras. Infelizmente, não pudemos ficar lá. Os encargos financeiros não estavam ao alcance de um lavrador que, de rico, tinha apenas o espírito altruísta e determinado.
— Vou falar com o Governador para ver se arranjo colégio conveniado. Não posso pagar preço tão elevado!
Um vereador, amigo dos donos da casa onde estávamos hospedados, prometera ajudar papai. Sabia que jamais ele falaria com o Governador. O jeito de lavrador e o chapéu o impediriam.
Dias depois, estávamos no escritório da Madre Hortênsia, diretora do Lar Escola Nossa Senhora de Lourdes.
Papai ficara encantado com as instalações e o trato dispensado às crianças. Muito espaço físico, majestoso refeitório e a algazarra da meninada que brincava ao vento. Havia uma capela, onde entramos por alguns minutos. Na simplicidade de homem do campo, papai ajoelhara-se e nós também. Talvez, agradecesse ou implorasse alguma ajuda.
O certo é que tudo se encaminhava da melhor forma possível. Deus estava mesmo do nosso lado. Parece que a Madre Superiora gostou da gente. Após longa entrevista (tipo cadastro), informou que o colégio era mantido pela Legião Brasileira de Assistência e que papai nada pagaria.
Os primeiros dias de internato foram difíceis. Estávamos acostumadas com a liberdade da natureza, com a produção farta do pomar, com as asas-de-moleque nos píncaros das mangueiras, cajueiros, amoreiras; os banhos, todo fim de tarde, no remanso do riacho. O primeiro copo de leite tomado no curral. Tudo, trocado agora, por uma liberdade metódica, disciplinada, relativa.
Assim vivemos no internato durante nove anos. Crescemos lá. Quanta saudade daquele tempo! Quanta saudade das férias, das festas, dos teatros, das colegas e das freiras. Eram muitas, as nossas mães. Freiras abnegadas que nos emprestavam amor de mãe sem nunca haverem transado a maternidade real. Como as respeito! Num misto de gratidão e saudade, guardo-as no coração.
Era um lar, o colégio! Daqueles que não existem mais. A educação disciplinada, permeada de trabalho, lazer, esporte e instrução, construíra os alicerces que fizeram de nós o que somos hoje.
Quanta saudade dos trabalhos manuais, da culinária, das aulas de violão, encadernação, cartonagem! Quanta saudade! Era o preparo para a criação da família: o passaporte, principalmente, para o casamento.
Lembro-me tanto da festa natalina! Quanta guloseima! As mesas enfeitadas para a ceia, à meia-noite, logo depois da missa. Que alegria, que ansiedade para ver os presentes e os muitos bombons coloridos, sem nunca faltar o pão-de-mel do qual eu gostava tanto. Tudo era feito em segredo, o que aumentava a nossa curiosidade, fazendo-nos sonhar com o grande dia. Quando se abria a larga porta do refeitório, parecia a entrada para o céu. O teto abundantemente iluminado, com estrelas brilhantes de todas as cores e a tradicional música de Natal, fazia-me sentir a criança mais feliz do mundo. Não havia tristeza no Natal. Todas nós exibíamos roupas e sapatos novos, coloridos, lindos... Parecia que, de repente, virávamos princesas. Nesse dia, as freiras não conseguiam conter a algazarra que fazíamos nos dormitórios com a passagem do Papai Noel. O bom velhinho deixava presentes para todas nós. Os olhinhos brilhavam de felicidade. Muitas choravam ao abrirem os presentes e confirmarem que o pedido da cartinha havia sido atendido. Que papai Noel legal!
O café da manhã e o almoço do dia de Natal eram sempre muito gostosos, ouriçando o nosso paladar, tornando grande a espera. Que dia lindo! Até hoje sou encantada com a data natalina e o Jesus-Menino volta-me sempre às origens. Os anos regridem e eu me sinto menina outra vez.
Lembro-me da concepção do Deus que criei para mim. E eu era “Filha de Maria”, uma congregação de moças que usavam traje branco com faixa azul na cintura durante as cerimônias litúrgicas. Lembro-me das missas em latim, das procissões, dos retiros, do aniversário da gente, quando ganhávamos estampas de santinhos com lindas dedicatórias, além dos “parabéns a você” no refeitório repleto de meninas, onde a amizade era o elo da fraternidade, do afeto, dos folguedos cheios de encantamento e sorrisos.
A lembrança das músicas sacras do velho órgão da capela traz de volta o passado tão distante.
Os primeiros sonhos e a primeira poesia. Eu tinha treze anos. De repente senti-me fêmea. Com isso viera o sentimento de que amaria um homem, faria um ninho de amor cheio de bombons, morangos e muitas borboletas, além de um jardim florido, enfeitado de crianças. Na última folha do caderno de matemática grafei a poesia, a confirmação de minha feminilidade e o dom de poetisa.
Espera
Espero-te,
Porque sei que virás!
Lindo,
Como o vejo em pensamento.
Tu, que me dás saudades!
Tu, que não conheço,
Serás meu,
Somente meu!
A ti, contarei dos dias de vigílias
E falarei da solidão.
Sei que tu virás um dia.
E o meu mundo
Será de muitas cores.
Tu, meu amor,
Serás realidade,
Eu sei.
É por isso
Que não me canso
De esperar-te sempre,
No calor dos dias,
No frio das madrugadas.
Quando chegares,
Tudo será dourado,
Cheio de encanto,
Sem pranto.
Esta saudade louca,
Que de ti eu sinto,
Será esquecida
Com a tua presença.
Tu, insubstituivelmente tu,
Serás meu!
Serás ternura!
E eu serei tua,
Amor!
Lembro-me, também, com saudade, da oração da noite, do canto de agradecimento antes e depois das refeições que cultivo até hoje. Lembro-me do jogo de tênis todas as tardes de domingo. Os passeios de trem de ferro. O sucesso na escola. E eu estudava fora dos muros do Colégio. Era bolsista do Colégio Santo Agostinho, onde fiz o ginásio.
De menina-moça fui me tornando mulher. As formas curvilíneas faziam-me altiva, faceira... Desabrochava para a vida. Os ensinamentos recebidos ajudaram-me muito.
Aos dezoito anos, deixei o colégio. Tinha que construir a própria vida, agora sozinha, gerindo os sucessos e incertezas. Josefa e Zélia havia saído antes do Colégio e moravam com o papai em Minas Gerais. Eu optara pelos estudos. Mesmo sem a companhia de minhas irmãs, permaneci no internato. Eu sabia que não era fácil viver. As peripécias que havia enfrentado confirmavam essa verdade. Entretanto acreditava nos meus potenciais e sempre pensei grande. Desde pequena pensava num futuro bordado de estrelas. Mas ele não viria sozinho, é claro, eu precisava ir atrás dele, conquistá-lo, fazer a minha parte. A gente só fracassa quando desiste de tentar.
Embora ao arrepio do papai, mamãe viera morar comigo, ou melhor, viera para que eu morasse com ela. Viera me oferecer apoio para que eu pudesse deslanchar em busca dos sonhos.
Ingressei na Secretaria da Segurança Pública e Justiça do Estado de Goiás como escrituraria contratada, cuja indicação devo-a ao jornalista Altamir Vieira e sua esposa Rosete, que, solidariamente, ofereceram-me o caminho para que eu construísse os passos. Devoto-lhes gratidão. Precisava continuar os estudos e o emprego propiciava isso.
Com a entrada de novo Governador e por contenção de despesas, rescindiram o meu contrato e os de quarenta e seis outros servidores.
Com a pertinácia que me ensinara a vida, não deixei o trabalho e fui nomeada a primeira Delegada Municipal comissionada do Estado de Goiás, pelo então secretário, Dr. Gonzaga Jayme, a quem devo as orientações de verdadeiro pai naquela fase tão primária de minha vida.
Com base na isonomia constitucional é que se pleiteara o cargo de Delegado Municipal, até então inusitado para mulher. Deu certo. Caso contrário, teria perdido o tempo trabalhado e, quem sabe, não seria uma delegada de carreira, formada em Direito, condição indispensável para o ingresso, além do concurso, é claro.
Por ter ascendido a cargo tão esdrúxulo, com tão pouca idade, o jornal Cinco de Março publicara, na ocasião, a manchete: “Moça inexperiente nomeada para combater bandidos no interior de Goiás”. Depois o cargo de escrivão fora regulamentado e submetido a concurso. Prestei-o e efetivei-me na carreira. Era o que melhor me parecia no momento. Os planos eram muitos e eu precisava alcançá-los.
Terminando o curso Técnico de Contabilidade, casei-me com o também funcionário da Segurança Pública, Alfredo de Paiva Tormin, formado em Odontologia, a quem namorava há três anos. Irmanamos os ideais e construímos um lar feliz.
A cada ano, um presente especial: um filho. Formamos um pequeno time de futebol de salão: quatro filhos. Lindos, inteligentes, aumentavam a nossa razão de viver.
Grávida do último filho, Alfredo e eu ingressamos no curso de Direito. Antes de terminá-lo fui promovida ao cargo de Comissário de Polícia.
Quando me preparava para o concurso ao cargo de Defensor Público, que se realizaria em Brasília, eis que a mão da fatalidade cerceia as minhas pernas, paralisa a destreza dos meus passos. Dois dias antes da aplicação do concurso, estava no hospital. Também me submetendo a provas; e que provas! A prova que me aplicava, inexoravelmente, a vida!
A fraqueza teria que se transformar em forças, compulsoriamente. A palavra de ordem era LUTAR.