DELEGADA, MULHER E NUMA CADEIRA DE RODAS
(Genaura Tormin)
Era comum alguém do povo exclamar:
— Vi a senhora na televisão, mas não sabia que era paraplégica. Que pena!
O cinegrafista não focalizava a cadeira de rodas durante as informações que, por vezes, tinha que prestar em frente das câmeras sobre trabalhos presididos por mim na delegacia. Talvez me quisesse demonstrar um gesto de carinho.
Certa vez, expliquei-lhe que a cadeira fazia parte de mim. Não podia locomover-me sem ela e não tinha o menor constrangimento. Afinal, era o meu jeito de andar.
— São as minhas pernas de aço, os meus nervos inquebrantáveis... Pode mostrá-los ao público. Não me menosprezará por isso.
A repórter que estava a ouvir as minhas explicações, para justificar diante das câmeras, revelou ao telespectador que eu era uma deficiente de cadeira de rodas, e, em seguida, dirigiu-me a palavra:
— Como a senhora pode exercer o cargo de Delegado de Polícia, numa cadeira de rodas?
Com o meu instinto poético e tentando ser abrangente na resposta, também, às muitas perguntas que me haviam sido feitas pela vida afora, expliquei:
Quero dizer a vocês,
que a mente não está nos pés,
e aqui, na minha cadeira,
trabalho por mais de dez.
Quem me conhece, já sabe
de minha capacidade,
não me curvo por besteira
e luto com hombridade.
Mato a cobra e mostro pau.
Medo, não tenho não.
Já mandei prender bandidos,
de estuprador a ladrão.
Lembro-me do grande Franklin,
dos Estados Unidos, presidente,
em tempos reacionários,
exemplo pra muita gente.
Por isso estou aqui,
em condição inusitada,
pois sei que neste Planeta,
não tem uma delegada
numa cadeira de rodas,
que seja capacitada,
faça inquéritos e flagrantes
numa Especializada.
Mente sã é corpo são,
por isso não tenho nada,
sinto-me com pernas fortes,
numa cadeira sentada.
Na rua dirijo carro,
faço compras e viajo,
trabalho, leciono e nado.
É só questão de estágio.
Para os que não me conhecem,
é essa a informação,
moradores da cidade
e outros que aqui estão.
Assim, matei a curiosidade do telespectador, mostrando-me por inteira, sem reticências.
Daí, foi nascendo em mim o desejo de abrir as portas ao público, não só no meu trabalho, mas na minha intimidade depois da paraplegia. Senti que o povo nada sabia sobre pessoas com deficiências, razão por que as julgava inválidas, como se a cabeça estivesse no dedão do pé, devotando-lhes, ainda, desairosa compaixão que tanto as prejudica.
Eu, também, quando andava, nada sabia sobre paraplégicos. Nunca parei para pensar. Eram coisas alheias ao meu convívio. Deixa pra lá! Estava muito ocupada com os problemas, os sucessos e enleios da vida. Não transava o assunto, assim como a maioria da nossa gente. Jamais imaginei que a sensibilidade tátil ia de embrulho por acréscimo.
Realmente, o pior só acontece aos outros, nunca à gente!
O desejo foi crescendo, crescendo, tomando formas, amadurecendo, e embora tivesse que desvestir a dor para erigir marcos benfazejos em defesa do porvir, resolvi escrever PÁSSARO SEM ASAS.
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