PLANTIO

PLANTIO
PLANTIO
(Genaura Tormin)

Deus,
Senhor dos mares e montes,
Das flores e fontes.
Senhor da vida!
Senhor dos meus versos,
Do meu canto.

A Ti agradeço
A força para a jornada,
A emoção da semeadura,
A alegria da colheita.

Ao celeiro,
Recolho os frutos.
Renovo a fé no trabalho justo,
Na divisão do pão,
. E do amor fraterno.

sábado, 2 de abril de 2011

PRIMEIRO CANTO À IMOBILIDADE


PRIMEIRO CANTO À IMOBILIDADE
(genaura Tormin)

Totalmente adaptada, a casa ficara pronta. Tudo estava entrando em ordem. Começava a aprender comigo mesma uma série de lições motivada pelas necessidades. Parecia um bebê descobrindo o mundo. Precisava ser positivo o propósito de minha vida. Com certeza, eu não teria nascido com a finalidade de causar problemas, de prejudicar aos outros, de ser fardo em seus ombros. As muletas estavam aparecendo em forma de adaptações, e eu as iria usar para substituir os muitos cerceamentos estampados pelo corpo.

Pela manhã, geralmente tomava café na cama, lia o jornal e, logo em seguida, partia para a bateria de exercícios físicos, aprendidos no Hospital Sarah Kubitschek. Com o tutor longo com cinto pélvico, ficava por mais uma hora na postura vertical, segurando-me nas paralelas (dois canos galvanizados dispostos paralelamente à altura do quadril humano médio). Ali, depois de percorrê-la por inúmeras vezes, carregando o corpo com a força dos braços em forma de pulos, procurava ler alguma coisa que me ajudasse naquela fase tão difícil. Tinha que me ocupar para tentar esquecer da catástrofe.

Mesmo nas paralelas, orientava os filhos na feitura das tarefas. Não abdiquei da função de dona de casa. Transferi a cozinha para a área de serviço, ao lado da varanda, onde estavam os apetrechos de fisioterapia. Dessa forma, poderia “matar dois coelhos de uma só cajadada”: fazer exercícios e administrar a serviçal que era iniciante, além de ficar perto dos filhos.

Sempre que possível, ia às compras de supermercado com a família. Era-me doloroso o reencontro com as pessoas conhecidas. Ah! As lamentações, o espanto ao verem-me presa à cadeira de rodas, “desenterravam sempre o defunto”, fazendo-me lembrar de que estava paralítica e muito diferente dos demais. Estava cerceada do meu direito ao caminhar. Hoje, não gosto de dar pêsames a ninguém. Talvez seja por isso. Acho que é abrir uma ferida sempre. Limito-me, apenas, a dar um abraço, um beijo...
Alfredo havia pedido um carro para mim com uma adaptação nova, de origem italiana, mostrada no programa Fantástico da Rede Globo de Televisão. Por capricho, essa amostragem dera-se poucos dias antes da paraplegia. Lembro-me de que estava recostada nos joelhos do Alfredo e ainda elogiamos o avanço da tecnologia, quando nos recordamos de um nosso ex-professor da época da faculdade que estava tetraplégico.

Confesso que me tocou muito o depoimento da moça paraplégica que experimentava o veículo defronte das câmeras: “Estou me sentindo um pássaro fora da gaiola” — dizia ela.

Talvez tudo isso fizesse parte de minha preparação, assim como os últimos poemas meus. Que ironia do destino! Um carro igual viria para mim. Viria substituir o meu carrinho amarelo. Eta carrinho! Amigo mudo que me auxiliava em tudo sem nunca reclamar. Agora seria um veículo da Fiat que comportaria as minhas pernas de aço (a cadeira), ajudando-me a aprender outra forma de viver.

Passaram-se quase sete meses desde a última vez que havia andado com os meus pés. A fisioterapia não me devolvera nenhum movimento. Não mexia sequer o dedão do pé. Mas estava quase me adaptando a caminhar sem fazer rastros, pois não havia outras opções. Em paraplegia, adaptar-se é irreversível. Caso contrário corre-se o risco de sofrer muito. Carrega-se o peso das dificuldades ou o do cadáver. Estar paraplégico é morrer um pouquinho todos os dias. É sentir-se prisioneiro no cárcere estático do próprio corpo. É exercitar a paciência, creditando à evolução do espírito o desafio de vencer as barreiras de si mesmo.

Além dos exercícios físicos diários, procurava preencher o tempo disponível para não dar espaço a pensamentos atrevidos ou saudosos, contrários ao meu objetivo. “Cabeça vazia é sempre oficina para o diabo”. Por isso fazia crochê, tricô, conseguindo bordar até uma toalha de banquete. Ocupava-me com leituras, conversas ao telefone, visitas de amigos e com os filhos que sempre estavam ao meu lado, auxiliando-me em tarefas complementares, além de me paparicarem muito. Eles estavam carentes e eu também. Era bom sentir o amor que me dedicavam, estampado na ternura, no carinho, alicerce maior de minha razão de viver.

Tudo o que fazia, com as dificuldades da primeira vez, era dolorido. Abria-me sempre a ferida. Embora não externasse, sofria por dentro. Meu avesso não queria confirmar a paraplegia, mas as dificuldades do “fazer” jogavam-me no rosto a dura realidade. Por isso queria fazer o máximo de atividades diversificadas possível para vencer logo a prova de fogo e tornar-me campeã de mim mesma, assumindo com dignidade a minha condição. Estava a construir uma couraça para resistir às dificuldades. Oxalá essa couraça se transformasse em pérola, já que esta é o resultado de uma ferida cicatrizada. Por vezes, o ego agradecia essa bravura.

Nessa época, um dia, estando em casa sozinha pela manhã, planejei como poderia tomar um banho. Despi-me na cama, passei para a cadeira de rodas, transferi-me para o vaso sanitário e em seguida passei para uma cadeira normal, semelhante às de bar. Com muita atenção e cuidado, tentei dar pequenos impulsos com os ombros para chegar ao box, quando a cadeira caiu para trás, lançando-me ao chão. Mal consegui desvencilhar-me dela, empurrando-a para frente. Não pude fazer mais nada, nem sequer me arrastar até a cama. Não conseguiria subir. Fiquei calma. Tinha assumido o risco. Aquela manhã estava fria, muito fria. Consegui alcançar a toalha de banho que se desfraldava no cabide à altura do meu braço. Como não tinha (e até hoje ainda não tenho) sensibilidade em mais de dois terços do corpo, protegi as partes sensíveis, ou seja, ombros, braços e cabeça, e deixei-me ficar no chão frio do banheiro. Pensei na serventia dos meus braços ilesos, e agradeci. Resisti à emoção que me apanhara de surpresa. Pena, por quê!? Repreendi imediatamente a estima ferida. Tentei dormir. Era o que de mais sensato poderia fazer. Cheguei a sonhar, quando fui acordada pelos filhos que chegavam da escola com o pai. Pensaram que eu estivesse morta ali no chão. A voz chorosa e agoniada do Fernando sobrepujava às demais. Graças a Deus que o choro deles foi em vão. Estava vivinha!

Lembro-me de que na igreja, durante a missa, uma senhora olhava-me tanto que cheguei a ficar perturbada. Depois da cerimônia, uma reunião no salão paroquial, a qual também compareci. Lá, a mesma senhora continuava a olhar-me insistentemente, como se eu fosse fantasma ou extraterrestre, sem, entretanto dirigir-me a palavra. Na ocasião, um garoto postou-se entre nós, impedindo, involuntariamente, que ela continuasse fixada em mim. Coitado, levou um empurrão. Percebi que representava uma figura inusitada para ela e, quem sabe, para muitos outros. Foi aí que senti, maior do que a minha saudade de andar, o desejo de abrir caminhos, construir nova mentalidade e mostrar que a pessoa com deficiência física é um ser social e deve ser aceita porque faz parte, contribui e produz, podendo até ser força transformadora, servindo de incentivo e exemplo aos muitos paralíticos andantes que permeiam todas as classes sociais.

Assim, precisava circular, mostrar-me, atuar, andar com o que me havia restado. Não era uma conquista, mas uma missão. Era preciso entender a mensagem e acreditar no poder da mente, na força da palavra e do exemplo.

No retorno a casa, a manhã estava gostosa. O sol, intensamente brilhante penetrava no meu quarto. Para senti-lo, sem amarras de janelas, galguei o corredor da casa e logo estava debaixo da romãzeira florida à beira da piscina.

O vento fazia rodopios no quintal como se me quisesse saudar, como se quisesse alegrar o meu avesso tão sofrido. O céu de um azul sereno fazia-se enfeitar por pequenas nuvens viajeiras, além de pandorgas coloridas empinadas pela criançada, cujo vozerio alegre e estridente chegava aos meus ouvidos. A vida movimentava-se faceira. A romãzeira dançava solitária, atirando suas folhas nas águas adormecidas. Agora pereciam pequenos barcos, navegando sobre calmarias, expostos às adversidades: ao sol escaldante, à chuva, aos icebergs e à própria morte. Alguém escoaria a piscina. Aqueles barquinhos de folhas seriam amontoados como lixo num lugar qualquer. Mesmo assim ainda seriam úteis. Tornar-se-iam adubo para fortalecer uma palmeira altiva ou uma roseira transverberada em pétalas rubras e aveludadas, dissipando o orvalho da madrugada sob o milagre dos primeiros raios de sol. E são as flores que declaram amor, enfeitam altares e fazem-se presentes na última despedida ao partirmos desta vida.

Mergulhada nessa meditação sublime, senti vontade de cantar a minha imobilidade, transformando-a num hino benfazejo.

Mente e coração andantes

Quero curtir minha imobilidade,
Mobilizando corações,
Marcando passadas
Em cada gesto,
Em cada grão de areia,
Carreando-os para o infinito.

Quero sentir
O gosto de ter pernas.
Acariciá-las,
Com o tato dos dedos,
Mobilizando todas as moléculas.
Quero sentir-me dançando
Ao som de Beethoven ou Bach,
Transando a paz de minha paraplegia
Ao compasso do coração
E à sincronia do cérebro.

Quero andar,
Mais do que todas as pessoas,
Embora saiba que,
Se externamente,
Não marco o chão
Com minhas pegadas,
Meu espírito se alicerça
Em pernas fortes,
Com mente e coração,
Energicamente andantes.

Foi assim que comecei a ser moldada para a nova vida. Adaptar-me ao novo visual não foi fácil. Tive que proceder a incessantes buscas ao meu interior: procurar, nos meandros de mim mesma, as fraquezas escondidas e transformá-las em força direcionada. A autoestima, agora sem a faceirice das pernas dançarinas, foi o carro-chefe para as demais conquistas.

Entretanto a lembrança dos sapatos de salto alto, das competições no trampolim da piscina e das corridas a cavalo e de bicicleta, por vezes, fazia-me gemer a dor do irreversível.

Não podia ser minha própria vítima. Por isso era compensador lembrar-me da fábula em que um homem se maldizia por ter apenas bananas para comer. Qual não fora a sua surpresa ao ver que alguém, atrás de si, estava a comer as cascas.
Assim a vida ainda me parecia muito interessante. Havia muitas cascas de banana atrás de mim. Poderia fazer minhas competições abstratas nos trampolins da imaginação e ser a campeã de todas as corridas, emprestando ao corpo a faceirice do espírito. Poderia mesmo marcar passadas a cada momento, mobilizando muitos corações paralíticos, enrijecidos pelo negativismo, pelo ódio, pela inércia, embora envoltos em ANDANTES CORPOS.

Restaran-me as mãos. As minhas mãos! Feito uma oração, ajudam às minhas pernas, transferindo-as, tão ternas, para a cadeira, o carro... E até quando vou me deitar, lá estão elas dispostas a me ajudar. Por que eu iria desanimar?

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Era uma luz no fim do túnel e eu não podia perder.
Era a oportunidade que me batia à porta.
Seria uma Delegada de Polícia, mesmo paraplégica!
Registrei a idéia e parti para o confronto.
Talvez o mais ousado de toda a minha vida.
Era tudo ou NADA!
(Genaura Tormin)



"Sou como a Rocha nua e crua, onde o navio bate e recua na amplidão do espaço a ermo.
Posso cair. Caio!
Mas caio de pé por cima dos meus escombros".
Embora não haja a força motora para manter-me fisicamente ereta, alicerço-me nas asas da CORAGEM, do OTIMISMO e da FÉ.

(Genaura Tormin)