PLANTIO
quinta-feira, 13 de janeiro de 2011
À ESPERA DE UM HOMEM BONITO
À ESPERA DE UM HOMEM BONITO
(Genaura Tormin)
(Este é um capítulo do meu livro PÁSSARO SEM ASAS. Um brinde aos meus leitores, o que faço com muito prazer.)
Os filhos sempre os melhores possíveis. Alfredo, no seu cargo de supervisor da Delegacia Geral, tinha que dar plantões noturnos periódicos. Nessas noites, Fernando assumia o lugar do pai: dormia comigo. A qualquer impasse, estava aquele “homenzinho” debulhado em préstimos a assessorar-me, sempre com o sorriso estampado no rosto e o linguajar afetivo. Por vezes, quando o acordava para fazer-me algum favor, ainda de olhinhos fechados, deixava o sorriso responder. Como posso esquecer? Foram esses pequenos gestos de amor que me impulsionaram a galgar espaços, conquistar divisas. Eu tinha que devolver alguma coisa. Quando a gente ganha um beijo, geralmente quer devolver dois, não é assim?
O carrinho proporcionava-me liberdade. Deslocava-me sozinha ao trabalho, às compras, às visitas. Isso me devolvia a sensação de normalidade. Satisfazia o meu ego.
Uma cadeira de rodas no porta-malas do carro, outra no local de trabalho e a última na garagem da casa facilitavam a tão desejada independência.
A primeira vez que fui visitar papai, no Estado de Minas Gerais, ele assustou-se ao me ver à direção do carro e exclamou, antes que eu descesse:
— Graças a Deus! Filha, eu sabia que você ia andar! Deus é grande e você não merecia ficar paraplégica! Que surpresa agradável você me fez! Estou passando mal... O coração bate descompassado!
Acho que papai, em sua desinformação, não sabia da existência de carro adaptado para paraplégicos. Pena que a surpresa era, justamente, o carro e eu à sua direção. Depois de tomar um pouco d’água açucarada, papai ficou menos ofegante quando lhe pude falar, ainda, de dentro do veículo:
— Não, papai, ainda não estou andando. Mas estou bem. Não se anda somente com as pernas. Viu como posso correr, ao volante do carro, com as mãos? Vencer toda essa distância para vê-lo? Mais importante do que andar é aceitar-se, viver todos os momentos com intensidade, superar os obstáculos e deles fazer degraus para novas investidas. O que me aconteceu não foi em vão. Observou como me tornei guerreira? Tudo tem uma razão de ser. Há sempre uma lição a ser aprendida, um crescimento a ser galgado. Deus é justo e tudo converge para o nosso bem, o senhor não acha? Estou construindo o caminho para o meu futuro, e isso significa muito para mim. Quem sabe, ainda poderei deixar meus rastros pela estrada?
Sempre que vou às compras no centro da cidade, fico à espera de um homem bonito, bem vestido, e, se possível, ensimesmado e arrogante, quando lhe dirijo a palavra:
— Por gentileza, meu senhor! Eu não ando e gostaria que me tirasse a cadeira de rodas do porta-malas do carro. Vou fazer compras na loja em frente.
Geralmente, ninguém se tem furtado ao meu apelo. Tento cumprir o figurino da primeira impressão, do materialismo; do que vulgarmente chamamos de invólucro, casca: cabelos bem dispostos em madeixas sinuosas; maquiagem bem feita; sorriso até os cantos das orelhas e alguns adereços que dão realce à arte-final.
Após me prestar a ajuda, o homem bonito, ensimesmado, geralmente não se contém e, com certeza, pergunta sempre:
— Foi acidente? Como pode uma mulher tão bonita numa cadeira de rodas?
— Não! Não foi acidente. Demos uma festa em casa, aniversário dos filhos, e no dia seguinte acordei paraplégica. Sem dor, sem febre, sem nada. Isso me leva a crer que não estamos neste mundo por acaso. A alma transcende ao Criador. Ninguém se responsabilizará por nossas culpas. Se não as pagarmos numa só vida, viremos noutra para resgatar a dívida. Hoje não tenho dúvidas disso. Acho que precisamos, com urgência, repensar nossos atos; norteá-los de amor ao próximo, vendo-o como importância maior, pois, ao partirmos deste mundo, não levaremos bens materiais, posições, títulos, mas simplesmente o bem ou o mal que tenhamos praticado aqui. Assim, quando temos que resgatar alguma dívida basta uma desculpa e eis a fatalidade! Comigo nem desculpa. A fatalidade veio numa noite de festa — costumo explicar.
Não posso perder a oportunidade de fazer alguma coisa. Quase sempre o homem bonito despoja-se do seu pedestal e auxilia-me até o meu itinerário, tratando-me com lhaneza.
Fica sempre o sentimento de haver plantado uma fagulha de ensinamento, de relações humanas, de prática logoterápica.
Certa vez, depois de uma palestra em comemoração ao Dia da Mulher, uma senhora dirigiu-me a palavra:
— Queria muito conhecê-la! A senhora mudou a vida do meu cunhado. Ele a encontrou fazendo compras e até ajudou tirar a sua cadeira de rodas do carro. Ele sofreu uma metamorfose com o que a senhora lhe dissera. Era mesmo um “cavalo” em casa e na firma. Está outro — concluiu.
Ao parar à porta da delegacia, dava dois toques na buzina convencionados como código, para que um policial conduzisse minha cadeira até a porta do carro, o que era feito com muita presteza. Sozinha fazia a transferência para ela, fechava a porta, colocava a bolsa sobre os joelhos e vencia a distância até o meu gabinete, passando pela sala de espera.
Numa segunda-feira, aconteceu-me algo inusitado.
Um senhor claro, robusto, com fisionomia que me lembrara o papai, encontrava-se triste, encostado à parede, na entrada da delegacia. Passando, dirigi-lhe um “bom-dia”. Senti vontade de atendê-lo em primeiro lugar, pela lembrança que me causara e por seu estado depressivo. Rodei a cadeira para trás e interpelei-o:
— O senhor vai tratar aqui, na Delegacia de Menores?
— Vou sim — respondeu.
— E qual é o seu problema? — voltei a perguntar.
Olhando-me de cima para baixo, como se estivesse a radiografar-me, o senhor trocou a morbidez por uma fisionomia austera. Comprimiu a testa, expeliu dois muxoxos e, como eu ainda esperasse, respondeu em tom agressivo:
— O meu assunto diz respeito somente à minha pessoa e ao Delegado de Menores. Não costumo contar os meus problemas para estranhos, ainda mais para uma aleijada.
— Tudo bem! — respondi e saí. Certamente, acordara com o pé esquerdo ou era a oportunidade para mais um trabalho na “seara”.
Menos de uma hora, aquele senhor estava à minha frente.
— Bom-dia! — dissera ele.
— Bom-dia! Em que lhe posso ser útil?
— Posso me sentar?
— À vontade.
— Tenho um filho menor de idade que é toxicômano. Foi preso nesse fim de semana. Já fiz tudo para tirá-lo desse vício, mas não adiantou. Viciou-se aos 13 anos. Mudamos daqui para o interior, onde ficamos por três anos. Tem uma semana que retornamos. Tudo voltou: a droga e a prisão. Vou desistir — lamentara o senhor.
— Não! Os pais jamais podem desistir. Se os filhos não precisassem de pai e mãe, nasceriam feito batata no brejo. Igual à planta. A responsabilidade dos pais é bíblica. Vou ajudá-lo.
Mandei pesquisar o arquivo e eis que o menor contava com passagens por uso de substâncias tóxicas, e agora, cocaína.
— Quem sabe uma clínica para desintoxicar? O senhor arranjará a clínica. Para todos os efeitos, ele estará sendo internado pela delegacia. Mandarei levá-lo. Ele não ficará sabendo nem que o senhor esteve aqui. Isso, para preservar o diálogo e o respeito entre vocês. Depois, em sã consciência poderá aceitar outros tratamentos.
Seu filho nunca deixou de usar tóxico. Como é o seu relacionamento com ele? O senhor sabe quem são os seus amigos? O senhor se preocupa se ele dorme ou não em casa? Já pensou em dar-lhe uma atividade responsável, mesmo em seu ramo de negócios, para que ele se sinta valorizado, produtivo? Ser pai é espinhoso! Será que o senhor tem sido um bom pai? Quase sempre o menor quer revelar insatisfação, uma carência, procedendo dessa maneira no mundo das drogas.
Vida é saber se relacionar; é tratar bem, dialogar, ajudar, dar um sorriso, uma palavra de apoio, uma batidinha no ombro, um gesto de solidariedade, um bom-dia agradável... A propósito, ainda há pouco, uma paraplégica, uma aleijada mesmo, como o senhor disse, dirigiu-lhe a palavra, espargiu-lhe um sorriso, tacitamente lhe oferecendo ajuda. E qual foi a troca? Meu amigo, a mente continua a mesma, o coração muito maior. Continuo sendo gente do mesmo jeito. Com uma diferença: aprendi a discernir o bem e o mal. O sofrimento aparou-me as arestas. Ensinou-me a ver o ser humano pela essência, pela alma que não se encerra nessa caminhada.
Não continuei porque o austero homem chorava. Levantara-se, dera-me um beijo na testa, talvez o primeiro tão humilde e espontâneo de toda a sua vida. À tarde, telefonara-me passando o nome da clínica. Não fiquei sabendo de mais notícias porque o menor não mais retornara à delegacia.
O sofrimento é um excelente buril para lapidar o diamante bruto que há em cada um de nós. É o instrumento que o faz brilhar e encantar e nos encantar também. É amando a nós mesmos que nos abrimos para a vida; que sentimos a beleza de amar e nos deixar amar. É com o sofrimento que, realmente, tomamos consciência do que somos e do que ainda poderemos aprender e ser, usando o otimismo por escudo quando a dificuldade bater. Admiti-lo não significa derrotismo, mas um caminho para chegar à sabedoria, que nos eleva a um estado de autoconhecimento, de paz interior. É nesse estágio que afloram as descobertas, sempre alicerçadas pela coragem.
Muitos outros fatos similares ocorrem sempre, aumentando o meu desejo de trabalhar. É verdade que o trabalho da pessoa com deficiência física, aos olhos do leigo, parece sacrificado. Mas sacrifício maior é anulá-la como força produtiva, relegando-a ao ostracismo, numa aposentadoria humilhante, além de diminuir-lhe a qualidade de vida e acrescentar os problemas sociais.
Não devemos ver os obstáculos pela ótica negativa, mas pela gratificação de abrir caminhos, criar mentalidade, contribuindo para novos tempos.
Por outro lado, não devemos permitir que os sentimentos de compaixão ou repulsa releguem-nos à inutilidade numa ociosidade crônica. Com tenacidade mostraremos o valor do nosso trabalho e as discriminações só persistirão se nós as aceitarmos, fazendo-nos de vítimas, apresentando indolência, insegurança, subserviência, buscando protecionismo sob o álibi da deficiência física.
Sartre dizia que “o importante não é o que fizeram do homem, mas o que ele faz do que fizeram dele”. Assim, precisamos entender a mensagem, arregaçar as mangas e erigir uma obra de arte sobre as limitações físicas que a vida nos legou, tornando-as objeto de nosso desafio.
Quero dizer que em paraplegia, e nas deficiências em geral, adaptar-se é irreversível. A coragem e a autoestima são ferramentas imprescindíveis para a conquista de qualidade de vida.
É oportuno desbravar de dentro para fora. A maior batalha é enfrentada com nós mesmos. Caso contrário corremos o risco de nos transformar em “cadáveres vivos”. O tratamento físico deve ser aliado ao psíquico, pois entre doença e doente há uma distância muito grande. Uma mente sadia e bem direcionada é a solução. O otimismo deve ser a bandeira desfraldada a cada dificuldade.
O iogue contemporâneo Paramahansa Yogananda, referindo-se aos revezes da jornada, afirmara: “Nada vos virá que não hajas merecido agora ou logrado com anterioridade”. E eu acredito nisso. Não há fardo pesado para ombros fracos. Sempre há a equivalência. O coração e a intuição são os nossos mestres! É a voz de Deus dentro da gente. Devemos segui-la sem medo de errar, desde que os feitos se enquadrem nos parâmetros da dignidade e da justiça.
“As reencarnações são os degraus pelos quais o ser se eleva e progride”. Por isso a existência é feita de momentos ruins e bons, tristes e alegres, e, muito mais de renhidas batalhas. Tudo impulsionado pela infalível Lei de Causa e Efeito e do livre-arbítrio que se equilibram no transcurso de sinuosas veredas que, por vezes, parecem-nos fatalidades. É a hora da responsabilidade! Somos herdeiros de nossos erros e acertos, embora a infra-estrutura da alma seja intocável. Por isso é preciso ultrapassar as formas físicas e vislumbrar a essência, empunhando a deficiência com honradez, encontrando, por meio dela, as escadas de ascensão à nossa conduta moral, além do exercício da humildade, do amor e do perdão.
Às vezes, as provas, as agruras e a limitações físicas, quando bem entendidas, podem reverter-se em privilégio. A meta tem de ser alcançada. O alvo é o sucesso com a conquista de nós mesmos, aproveitando as pedras do caminho para a construção de nossa própria escada. É bom pensar que a queda pode também nos arremessar ao alto. Todos nós carregamos as cicatrizes do nosso “ontem”, e elas não nos impedirão de sorrir. Dependendo da disposição mental, tudo se transforma. O que ontem foi tempestade, hoje pode ser bonança.
Se eu não fosse paraplégica não estaria aqui, passando-lhes minhas experiências. Não teria escrito Pássaro Sem Asas, que alcança um próximo um pouquinho mais longe. E por isso pesa-me também a responsabilidade.
Precisamos lutar pelo reconhecimento da igualdade jurídica e pelo direito ao trabalho, máxima maior estampada na Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Apesar de integrar uma minoria, geralmente relegada à exclusão e exposta a concepções desprezivas, a pessoa com deficiência, devidamente inserida num local de trabalho sem barreiras que lhe impeçam o caminhar, produz, cria e se evidencia em competência, auxiliada pelo desafio.
Conheço paraplégicos que se destacam como empresários, farmacêuticos, veterinários, arquitetos, dentistas, altos servidores públicos, professores universitários, causídicos renomados, deputados, vereadores, juízes, ministros, e até Ministro-Presidente. Há médicos paraplégicos que nada deixam a desejar dentro de suas especialidades. Tenho um colega Delegado de Polícia, com total deficiência visual, que dá a volta por cima, desempenhando um excelente trabalho. Ainda, muitos escritores, como Wiliam César Alves Machado - doutor em enfermagem - que tem empunhado sua bandeira em defesa da pessoa com deficiência, lançando livros e artigos sobre essa temática, apontando caminhos e dirimindo dúvidas.
Há pouco, conheci uma moça com Osteogênese Imperfecta, com uma estatura similar a de uma criança de quatro anos, que, não obstante as muitas dificuldades, próprias do arraigado preconceito e da desinformação da sociedade e das autoridades constituídas, é farmacêutica e professora universitária. É um referencial que alenta, concitando-nos a uma escalada, cada vez maior, na busca dos nossos espaços, por que não dizer, dos nossos direitos como cidadãos e herdeiros deste País.
É dever de o Estado cuidar da habilitação e reabilitação da pessoa com deficiência, integrando-a no mercado de trabalho, além de se preocupar com o atendimento especializado nas áreas da educação e da formação profissional, pois, muitas vezes, para a pessoa com deficiência, o trabalho pode ter fins terapêuticos, melhorando sensivelmente sua saúde física e mental, aumentando-lhe a autoestima, respeitando, assim, a sua dignidade de ser humano como um dos fundamentos da nossa Carta Magna.
Doença não combina com felicidade. Quem está feliz não adoece. Está provado que as pessoas otimistas têm sistema imunológico mais resistente. A essência do bem é a grande controladora da vida. É oportuno que corramos atrás do estado de felicidade. Ele não é uma dádiva. É, principalmente, uma conquista e o desbravamento é de dentro para fora. Tudo está dentro de nós em estado letárgico. Aflorar esses estados é uma questão de sabedoria. Exige coragem e determinação. Ocupar a mente, trabalhar, doar-se, reconhecer os próprios potencias, enfim, gostar-se é a melhor receita.
É preciso que sejamos artistas na reconstrução de uma vida melhor. Quem sabe, reinventar a vida seja a solução?
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LEVE, LIVRE & SOLTA!
Sejam bem vindos!
Vocês alegram a minh'alma e meu coração.
Era uma luz no fim do túnel e eu não podia perder.
Era a oportunidade que me batia à porta.
Seria uma Delegada de Polícia, mesmo paraplégica!
Registrei a idéia e parti para o confronto.
Talvez o mais ousado de toda a minha vida.
Era tudo ou NADA!
(Genaura Tormin)
"Sou como a Rocha nua e crua, onde o navio bate e recua na amplidão do espaço a ermo.
Posso cair. Caio!
Mas caio de pé por cima dos meus escombros".
Embora não haja a força motora para manter-me fisicamente ereta, alicerço-me nas asas da CORAGEM, do OTIMISMO e da FÉ.
(Genaura Tormin)
Posso cair. Caio!
Mas caio de pé por cima dos meus escombros".
Embora não haja a força motora para manter-me fisicamente ereta, alicerço-me nas asas da CORAGEM, do OTIMISMO e da FÉ.
(Genaura Tormin)
Estamos acompanhando sua caminhada e sua predestinação em ajudar, em promover a felicidade do próximo, em motivar as pessoas.... Talvez deva responder às pessoas quando me perguntam porque eu as ajudo: é hereditário.... aprendi assim.... Não tenhas dúvidas, somos orgulhosos de ter você e de nos ter ensinado a ser gente.... Gente que faz a diferença para outras "gentes"... Às vezes com o pouco que fazemos, fazemos muita diferença na vida de muita gente... Beijos.... Falo isso e sei que todos pensam assim... Seus filhos....
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