PLANTIO
sábado, 12 de junho de 2010
MULHER PARAPLÉGICA
MULHER PARAPLÉGICA
(Genaura Tormin
"O importante não é o que fizeram do homem, mas o que ele faz do que fizeram dele".
(Jean Paul Sartre)
O designativo PESSOA PORTADORA DE DEFICIÊNCIA, largamente usado até os anos 90, o qual se encontra também nos artigos da Constituição Federal de 1988, foi substituído por PESSOA COM DEFICIÊNCIA, abrangendo as deficiências física, mental, auditiva e visual.
A legislação tem ratificado essa terminologia, bem como o Decreto n. 6.949, de 25 de agosto de 2009 que promulgou a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. Há um consenso mundial sobre a aceitação desse designativo. Na verdade, portar significa uma situação voluntária, como portar um objeto, uma carteira, por exemplo. Nesse caso, poderíamos dispensar a nossa deficiência?
MULHER PARAPLÉGICA – geralmente é aquela que num dia qualquer da vida perde o direito de caminhar com os próprios pés, tornando-se paraplégica. E tem que o fazer com a mente, deambulando por meio das rodas inanimadas de uma cadeira de rodas. Entretanto há as pioneiras que, por motivos diversos, já nascem com deficiências. A elas, rendo homenagens, chamo-as de mestres e curvo-me com respeito.
As fatalidades não avisam nem escolhem status, raça, cor, hora, sexo ou credo. E num passo de mágica, eis a paraplegia! Os sonhos esfacelam-se às conjecturas do nada.
Mesmo assim, a ordem é correr atrás da vida! Aprender outra maneira de viver.
Recriar-se! Ir à luta para não ficar à mercê do coitadismo, vendo a vida passar. Realmente, uma grande empreitada. Um desafio que nos fará subir ao pódio, sagrando-nos campeãs do torneio de nós mesmas.
Mudam-se parâmetros, paradigmas, mas não muda a garra nata da mulher que, por excelência, traz no sangue a gênese do esforço para se superar, vencer obstáculos e dificuldades.
Necessário e urgente se faz dar uma faxina na caixinha dos pensamentos, reorganizando ícones, criando possibilidades, redimensionando valores. A meta é reinventar a vida, num projeto arrojado e corajoso, sem deixar espaços para os males psicossomáticos. Revisá-lo, como se revisa um texto, corrigindo diálogos, substituindo parágrafos inteiros.
Nessa lapidação, o amor deve ganhar maiores proporções, bem como a responsabilidade, a compreensão e, sobretudo, a aceitação e a paciência. Entretanto, cortam-se alguns zeros metafóricos de um caso-verdade que nunca poderá ser apagado ou destruído da história de uma existência. Mesmo revisto, retocado, sua essência permanecerá indelével na alma. Uma saudade.
Agora tudo terá que ter um único comando: CORAGEM!
ARQUITETA DE MIM
(Genaura Tormin)
Vou reinventar a vida!
Fazer consertos,
Aplicar remendos.
Prenhe estou de disfarces
E esgueira-me pelo corpo
A plangência do tempo,
Restos de batalhas
Que se reiniciam sempre.
A incoerência dos retalhos
Fragmentam-se pelos dias.
Recolho os estilhaços.
Sou enigma no existir!
Fabrico fantasias e metáforas.
Por vezes a paraplegia é abrupta. De repente a fatalidade e em seguida o quadrilátero de um quarto de hospital. Passamos a abrigar novos vocábulos no nosso dicionário: esfíncter, cateterismo, sonda... Muitas seringas, comprimidos, raios-X, dietas, ultrassonografias, ressonâncias magnéticas e toda uma parafernália antes conhecida só de longe. Cirurgias, imobilidade e leito o tempo todo, tudo respaldado por enorme vontade de viver.
Na fase hospitalar, o tratamento medicamentoso ou cirúrgico tem de ser coadjuvado com a mente bem direcionada, sem nos esquecer de que, acima de tudo, somos energia e a altivez da postura mental é muito importante. A coragem ganha força hercúlea e o barco tem que seguir enfrentando borrascas, ribanceiras e tempestades. É uma tarefa exclusivamente de quem ganha uma paraplegia. Outras pessoas não a farão por nós! Temos que abraçar a causa.
É questão de sobrevivência, ou excelência de vida. Elevamo-nos à altura do que nos propusermos. Não somos as primeiras e nem seremos as últimas mulheres a experimentar tais condições que, embora doloridas, podem também nos arremessar a um final feliz.
Esse novo modelo não está em tratados alopáticos, nem é imposto. Temos que ser o nosso professor! O aprendizado é compulsório. Nele, não há portas que não se abram. Nem mesmo a Lei é um bloco estanque. Basta bater que brechas aparecerão. É aí que fincaremos os nossos comandos, elaborando uma sentença de sucesso.
Eu sou paraplégica e posso contar.
Meu nome é Genaura Tormin. Estou paraplégica há 28 anos.
Agora eu não pulo corda, não ando de bicicleta... Estava nos píncaros do sucesso e inexoravelmente fui atirada ao caos. Recebi uma dura sentença por crime que não cometi nesta vida. Mataram minhas pernas em mim.
De repente uma marcante mudança! Mesmo assim, ainda corro atrás da vida. Esforço-me para ser a campeã dos meus aprendizados. O meu coração é vivo e o sorriso aflora sempre até os cantos das orelhas. Eu estou viva!
Numa manhã de março acordei paraplégica, vítima de uma virose ou de um erro médico. Lembro-me de que as limitações eram estarrecedoras, mas eu as enfrentava como as enfrento até hoje, procurando driblar o impossível, para conseguir independência, pelo menos comigo.
Eu ficava hora montando estratégias, analisando circunstâncias para realizar os intentos. Eu queria desenvolver uma autoconfiança que me conduzisse à ousadia mental de perseguir novos objetivos, construindo caminhos para o meu novo mundo. Afinal, dizia Einstein: “A mente que se abre a uma nova ideia, jamais voltará ao seu tamanho original”.
Eu tinha medo da solidão, medo da convivência comigo mesma. Na verdade, o medo era o de que os pensamentos de conquista fossem subjugados. A vida estava sendo muito complicada, muito difícil! Afrontava-me sem tréguas, estampada na imobilidade e na disfunção fisiológica do meu corpo, além de uma eterna e apavoradora dormência.
Sempre que abriam o guarda-roupa à minha frente, os sapatos e as sandálias de salto alto agrediam-me sem compaixão. Expulsei-os de lá. Doei-os, seguindo o ditado popular: “O que os olhos não veem, o coração não sente”.
Tinha que respeitar a minha individualidade e olhar para frente e para o alto. Não podia viver de passado, embora a saudade de mim, por vezes, lavasse as minhas faces em lágrimas doloridas. A gente não esquece o que viveu apenas aprende a separar as coisas e encaixá-las em prismas diferentes. Isso é sabedoria.
E a vida à frente! Um turbilhão de dificuldades nunca imaginadas. Uma jovem mulher reduzida à cabeça, seios e braços. O resto, morbidamente alheio ao meu comando: dormente, como se não fosse meu.
Os meus passos foram banidos. Perdi o meu ir e vir cheio de graça, de trejeitos, de muitos encantos. Poderia ter sido uma bailarina na vida, mas tive a vida para bailar, gingar até encontrar os meus próprios caminhos, lapidar os meus cantos, aparar as arestas.
A minha vida sofria grande transformação. E eu tinha urgência de que essa metamorfose não se resvalasse para o negativismo. Pertinácia e otimismo seriam as minhas armas. Revesti-os de poderes mágicos. Fiz dessa hora um marco divisor de águas.
Lógico que envidei muitos esforços para reverter o descalabro da situação. Sou guerreira de muitas batalhas para não ser escória de uma sociedade que, geralmente, só aceita os fortes, perfeitos e vencedores, alienando a pessoa com deficiência, sem entender que ela também é forte e vencedora de si mesma, compulsoriamente. É um resquício da cultura legada pelo modelo filantrópico.
Precisava retomar o meu lugar de esposa e mãe no meu lar. Na época meus quatro filhos, ainda pequenos, precisavam muito de mim. Ainda não tinham asas para alçar voos sozinhos. Isso me impulsionou a entender que precisava seguir a caminhada, mesmo sem marcar passadas no chão.
Consciente de que seria irreversivelmente uma paraplégica, preparei-me e classifiquei-me muito bem para o cargo de Delegado de Polícia de Goiás. Exerci-o com presteza, durante 13 anos, ocasião em que, também por concurso público, ingressei no Judiciário Federal, atuando por alguns anos na Diretoria de Recursos Judiciais do Tribunal Regional do Trabalho Goiás, onde fui, também, subdiretora. Hoje, trabalho na Secretaria de Coordenação Judiciária do mesmo Regional.
Quem falou que a pessoa com deficiência física não pode trabalhar? Ando de cadeira de rodas e trabalho. Conquistei até o título de “Servidor-padrão”.
Deficiência não é uma opção pessoal. É uma parte natural da experiência humana. Mesmo que nos empreste um visual diferente e algumas dificuldades locomotoras, a mente sã cria soluções para tudo. O trabalho devolve-nos sempre o sentimento de utilidade e supera a defasagem do caminhar.
Há preconceito? Há! Ele existe e não será banido tão cedo, não só em relação às pessoas com deficiência, mas em relação aos grupos vulneráveis. Isso é cultural. Vem de longas datas. Na Grécia antiga, as crianças que nasciam com deficiência eram tidas como seres sem alma, abandonadas para morrer. Os cristãos achavam que era um castigo de Deus.
Ainda hoje a cadeira rodas passa uma ideia de mendicância. Há sempre sentimento de piedade, de medo, e quase nunca o de respeito. Se a pessoa for do sexo feminino, principalmente, presume-se logo que jamais encontrará companheiro. Se a sequela for recente, fatalmente será abandonada por ele. É como se, de repente, o ser humano se transformasse num objeto sem valor.
Mas isso a gente vai tirando de letra, mostrando o outro lado. O importante é: “Levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima!”
Baseada no desafio integro-me bem aos grupos de trabalho. Insisto por tratamento igualitário, mesmo por que, esculpida nas dificuldades, tenho por lema a coragem e o desejo de vencer. Jamais me subjugo às subserviências em busca de protecionismo, benesse, sob o álibi da deficiência. Preocupo-me em mostrar competência, conquistando respeito pelos meus próprios méritos.
Sinto-me adaptada à vida! Sei que ela se adaptou a mim também. De minha catarse, sou mestra. Tenho uma família que me ama e não me castra as oportunidades. Pelo contrário, ela é um nascedouro de forças e incentivos. Isso me é de importância vital e respalda o segredo do sucesso que tenho conquistado.
Sou escritora. Escrevi PÁSSARO SEM ASAS, um livro autobiográfico, corajoso, em que me desnudo, viro-me do avesso e conto ao leitor toda a minha trajetória depois dessa nova condição de ‘rodante’: avanços, derrotas, conquistas, aprendizados, até as verdades mais reclusas na cela do peito.
Relato tudo, não como uma história que haja acontecido no estrangeiro, num lugar distante, mas um fato verdadeiro, acontecido aqui mesmo, entre nós, cuja protagonista, apesar de não ter tido um final como nos contos de fadas, faz-se feliz, viva e atuante.
Mais três livros foram também editados. Apenas uma flor, Nesgas de saudade e Borboleteando. Neles eu enveredo pelos veios da poesia para acalentar instantes e fabricar fantasias.
A vida se exibe à minha frente! Ainda acontece inteira no meu coração. Eu cumpro e assumo o direito de ser MULHER em toda a sua plenitude.
Continuo perseguidora de sonhos. Acredito no amanhecer, no poder recomeçar a cada dia. Sou a síntese dos meus desejos, compilação de inércias estáticas. Encanto-me com a vida, com os amores, com o belo, com a arte de fazer versos. Acho prazeroso brincar com as palavras. Por meio delas exponho-me por inteira. Desnudo-me! Mostro a alma, o coração e a poesia que há em mim.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
LEVE, LIVRE & SOLTA!
Sejam bem vindos!
Vocês alegram a minh'alma e meu coração.
Era uma luz no fim do túnel e eu não podia perder.
Era a oportunidade que me batia à porta.
Seria uma Delegada de Polícia, mesmo paraplégica!
Registrei a idéia e parti para o confronto.
Talvez o mais ousado de toda a minha vida.
Era tudo ou NADA!
(Genaura Tormin)
"Sou como a Rocha nua e crua, onde o navio bate e recua na amplidão do espaço a ermo.
Posso cair. Caio!
Mas caio de pé por cima dos meus escombros".
Embora não haja a força motora para manter-me fisicamente ereta, alicerço-me nas asas da CORAGEM, do OTIMISMO e da FÉ.
(Genaura Tormin)
Posso cair. Caio!
Mas caio de pé por cima dos meus escombros".
Embora não haja a força motora para manter-me fisicamente ereta, alicerço-me nas asas da CORAGEM, do OTIMISMO e da FÉ.
(Genaura Tormin)
Não concordo, minha querida amiga, com quaisquer dos rótulos com que nos contemplem legalmente, porque antes e mais que tudo somos gente, todos, sem distinção de vocábulos e o dia que toda legislação contemplar o ser humano no humano do ser, de verdade, realmente, sem frestas, sem sombras, sem paradigmas, sem necessidade de interpretações, então aí sim estaremos sendo igualados no que temos efetivamente de comum, o humano do ser, e não naquilo que temos de diferente. Beijos desta tua amiga eterna aprendiz na arte de arquitetar um mundo melhor para todos, porque onde o pé não chega a cadeira roda e é para isso apenas para isso que ela serve, como sapato especial. Amo tudo o que vc escreve e o seu livro é efetiva lição de coragem e curso de especialização na arquitetura humana.
ResponderExcluir